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Duas semanas de estrada: breve crónica de uma fugaz travessia da Europa – Segunda parte

Balcãs afora

Comboio Zagreb-Belgrado
Viajo depressa, muito depressa, demasiado talvez, percorrendo num ápice a Europa, num sopro que me trouxe e me transporta em corrida pelos Balcãs, essa fronteira para mim até agora desconhecida e que vou aos poucos desvelando, ainda que de maneira fugaz, ainda que levado nessa leve brisa com que passo por aqui sem me demorar. Três dias depois de sair de casa já estava em Ljubljana, que vim encontrar gelada, escondida debaixo do grosso manto branco que enche de inverno esta cidade e a faz quase de conto de fadas, como um conto de Natal que percorro deixando leves pegadas na neve ao ritmo que subo e desço as suas ruas, atravesso o rio de um lado para o outro nas suas pontes, subo até ao seu castelo de onde avisto a imensidão de branco em que está transformado este país, voltando depois a baixar para me aquecer num goulash ou copo de vinho com que aconchego a noite. Mas mal cheguei e já parti, andando um pouco mais adiante até Novo Mesto, ainda na Eslovénia, cidade onde reencontro um velho amigo e me deixo envolver pela imensa hospitalidade da sua família. Ainda assim não me demoro, urge partir de novo, e é esse mesmo amigo que me leva até um novo país, a Croácia, até Zagreb, também abraçada pelo frio e cujas ruas percorro de forma igualmente fugaz, não sem antes reencontrar um outro velho amigo que de forma igualmente calorosa me faz rapidamente sentir em casa nesta terra desconhecida. É também em Zagreb que começo a fazer novos amigos entre os companheiros de viagem que cruzam o meu caminho. De entre as conversas que temos marca-me a história de um emigrante Sérvio, que tenta desesperadamente voltar para a Bélgica, onde trabalhava e de onde foi expulso, querendo voltar para poder reencontrar a sua família e continuar a ganhar a vida. Pede-me que o ajude, pergunta se tenho carro, se o posso levar até ao lado de lá da fronteira, ou perto o suficiente para passar a salto. Respondo com sincera tristeza que não tenho, apesar da vontade de o ajudar, olhando-o apenas, impotente, com a tristeza a multiplicar-se nos seus olhos num sofrimento que me traz de novo de encontro à dura realidade da vida por outras terras, realidade tão portuguesa, de outros tempos e de sempre, que me é tão familiar, sentida na própria pele e na de avós e outros familiares, mas nunca sentida desta maneira, na intensa dificuldade que a clandestinidade de querer trabalhar faz ao separar famílias em terras alheias. Apesar de tudo seguimos em direcções opostas, também não me demoro na Croácia e parto de novo para este, para a Sérvia, percorrendo de comboio a distância até Belgrado. No caminho, e sem querer, dou por mim a olhar pela janela em busca de sinais de destruição, marcas dessa guerra recente que povoou os noticiários da minha juventude e que massacrou milhares por aqui, ao longo desta linha de comboio talvez, certamente ao longo desta fronteira que cruzo. Já lá vão quase 20 anos desde que terminou, é certo, e as marcas visíveis são poucas, pelo menos por onde ando, mas ainda assim aparecem esporadicamente para me lembrar que o que faço hoje era impossível há tão pouco tempo. Contemplo os viajantes silenciosos em meu redor, cujas marcas são certamente mais duradouras e profundas, imagens silenciosas do dia em que viram a própria casa transformada em campo de batalha sanguinária. Apesar da curiosidade não quebro o silêncio, menos ainda para lhes falar desse tema, deixando-me antes embalar pelo suave ressalto das linhas por onde ando e pelo amarelo-torrado da tarde que cai já em terras Sérvias. Apesar das memórias tristes encontro este país bonito, alegre, em especial a sua capital Belgrado, cidade vibrante, apaixonante, misteriosa, intensa, de sabores novos, de ritmos enérgicos. A cidade clama para que fique mais tempo, mas a viagem urge, sigo a contragosto na promessa interior de voltar quando possível, avançando contínuo para este, depressa, demasiado depressa... Assim chego à Bulgária numa fria manhã de Sófia, onde me sinto recuar até aos tempos do velho comunismo na estação de comboios que me recebe, em que nada entendo, e de onde com dificuldade arranjo maneira de seguir até ao centro, cravejado de mais velhas relíquias do bloco de leste que demoram em se deixar apagar pelas mudanças evidentes que o tempo foi trazendo desde a democracia. É aqui que sou obrigado a parar pela primeira vez nesta viagem, abatido pelo cansaço, segui demasiado depressa, já não sei viajar assim, por isso tiro dias de descanso, curtos, aqui e mais adiante em Plovdiv, velha relíquia romana onde encontro também os sabores da melhor cozinha daqui. Mas assim que posso sigo, sigo, infinito, mais além, mais para este, viajando muito depressa, demasiado talvez, mais do que queria certamente, mas empurrado pela urgência da chegada à Índia ter uma data marcada que não me deixa aproveitar como queria estas terras desconhecidas. Silenciosamente, a Europa foi-se despedindo de mim, aos poucos, primeiro no idioma que deixei de entender, depois na escrita que se fez imperceptível, nas igrejas que se fizeram ortodoxas, no café que se fez turco, tudo num crescendo de pequenas mudanças que acompanharam a velocidade a que me afastei de casa e me fui embrenhando pelo este do meu mundo. Antecâmara do que está por vir, o leste da Europa foi-me desvendando aos poucos os segredos do oriente, num muito lento tirar de véus que me aguça a curiosidade e faz aumentar a excitação na ânsia dos dias que estão por vir, já ali mais adiante, em Istambul, último porto da velha Europa e porta de embarque para a Ásia que me espera. Viajei depressa, demasiado depressa, por isso é com alegria que chego à Turquia para pela primeira vez nesta viagem me poder demorar, como gosto, sem pressa de partir, apenas envolto na preguiça de aos poucos me ir sentindo parte de cada lugar.

Pelos Balcãs, Janeiro de 2013

Ljubljana, Eslovénia

Ljubljana, Eslovénia

Ljubljana, Eslovénia

Novo Mesto, Eslovénia

Novo Mesto, Eslovénia

Zagreb, Croácia

Zagreb, Croácia

Zagreb, Croácia

Zagreb, Croácia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Sófia, Bulgária

Sófia, Bulgária

Sófia, Bulgária

Plovdiv, Bulgária

Plovdiv, Bulgária

Plovdiv, Bulgária

Duas semanas de estrada: breve crónica de uma fugaz travessia da Europa – primeira parte

Até que o mundo me traga de volta

Estação de Santa Justa, Sevilha, Espanha
Saio de casa. É dia 14 de Janeiro do ano de 2013 quando o faço, num solarengo dia de inverno em que amanheço depois de uma noite quase sem dormir, passada entre os afazeres de última hora e os muitos que como sempre deixei para o último segundo, entre eles o encher da mochila que fecho num sopro antes de partir. Saio, e aos poucos vou-me despedindo daqui, num último olhar que dou ao meu quarto, à minha casa de sempre, às cadelas que para não variar abanam o rabo sem saber que não me voltam a ver tão cedo, à minha Loulé natal, ponto de partida e destino final desta viagem que me trará de volta, um dia, se Deus e sorte quiserem, seja qual for a estrada que me leve. Atordoado pelo sono e pelo peso do momento, vejo a estrada passar por mim, e com ela todos estes lugares por onde cresci, que fazem parte de mim e que passam agora pelos meus olhos, como flashes de uma vida passada e da memória futura que me vai acompanhar no caminho enquanto se desvanece e se mistura com as imagens que irei coleccionar pelo mundo. Pouco depois o sono toma conta de mim e viajo para outras distâncias, num sono pesado e leve que se abana com as curvas do caminho e se desperta de vez em quando. Assim faço o caminho até Sevilha, primeira paragem do meu caminho, cidade que é um dos primeiros destinos de viagem da minha vida e que hoje é de novo começo, contrariando assim a sua condição de final das minhas últimas duas viagens de longo curso. O ponto de reencontro faz-se lugar de despedida, nesta estação de comboios que por duas vezes tanta alegria trouxe aos meus pais e que hoje me leva para longe deles, uma vez mais. Mas se a saudade já toma conta de nós é uma saudade serena, minha e deles, de quem sabe que assim tem de ser, envolta num misto de certeza e conformismo. Como num parto sem dor em que os meus pais me dão de novo ao mundo, despeço-me num último abraço e desço até ao comboio, atirando um adeus final de até já antes de entrar na carruagem que me levará até Barcelona, começando assim o meu caminho solitário de volta a casa, esse que espero fazer pelo outro lado do mundo. Entro, pouso a mochila, sento-me, sinto a carruagem que se começa a mexer, sinto-me de novo partir, num instante estou a caminho, saindo de casa, outra vez, até que o mundo me traga de volta.

Ave Sevilha-Barcelona, Espanha, 14 de Janeiro de 2013


Roménia Express

A noite fria de Barcelona abraça o escuro terminal e os meus ossos quando ao longe se deixa ver pela primeira vez aquela que será a minha casa nas próximas 24 horas. A julgar pela data, um qualquer dia de semana perdido no meio do mês de Janeiro, a minha esperança é de que o autocarro siga vazio, ou quase, permitindo-me um mínimo de conforto e um sono relativamente normal nesta longa jornada, que me levará daqui através de estradas Francesas e Italianas até Ljubljana, capital da Eslovénia e destino final deste segundo tramo do caminho. As poucas pessoas que esperam comigo fazem-me acreditar que será possível, mas a realidade veio breve para me fazer comprovar que as minhas piores expectativas se concretizaram. Ao entrar no autocarro, completamente atafulhado de pessoas e de toda a espécie de trastes a ocupar qualquer lugar possível, confirmo que a jornada vai ser longa e dura. Depois de alguns minutos a procurar lugar no autocarro escuro e aparentemente cheio, por fim alguém se acusa a contra gosto e me indica o lugar ao seu lado. ‘Janela!’, penso eu com relativa alegria já que sei que assim poderei dormir melhor, sendo logo em seguida recordado do tamanho das minhas pernas ao me enfiar no apertado espaço onde por fim me encaixo. Fico quieto, agradecendo ao meu companheiro do lado, um homem dos seus 30 a 40 anos com cara de poucos amigos e que aparentemente não fala senão romeno, estando talvez apenas com pouca vontade de conversar neste momento. A minha vontade de falar é também relativa, a hora já vai adiantada e quero dormir em breve, por isso simplesmente espero a partida enquanto atiro um adeus à amiga que me acompanhou até aqui, parte de um grupo de amigos de outras viagens e que fizeram questão de tão bem me receber na sua cidade. Por fim arrancamos. Olho ao meu redor, absorvendo aos poucos o Roménia Express, nome que dei a este autocarro que desde Madrid rodeia a península Ibérica pela sua costa este até Barcelona e segue, ao longo de intermináveis horas, até à Roménia, num longo percurso que transporta acima de tudo emigrantes e as suas famílias nos seus movimentos para fora e de regresso a casa. Pouco consigo ver das pessoas que me rodeiam, mas sinto-me de certa forma viajar no tempo, 20 ou 30 anos, jurando ver uma assombração de Ceausescu num banco perto de mim, um senhor com ar antigo e que parece ter sido arrancado dos tempos da velha ditadura comunista. Os outros que consigo ver têm apenas um ar abatido, pela viagem ou pelo trabalho, cansados que são incessantemente pela vida dura que levam longe de casa. Embalado nestes pensamentos acabo por dormir, um sono difícil, várias vezes desperto pelos acidentes geográficos do caminho, ou pela perna ou nádega dormentes que me fizeram sem sucesso procurar uma posição melhor para me sentar. Apesar do desconforto, quando dei por mim já era manhã e parávamos para o pequeno-almoço, tomado ainda em França nos arredores de Nice mas já perto da fronteira Italiana. Soube-me bem sair do meu apertado cockpit e esticar as pernas, nem o frio cristalino das primeiras horas da manhã me reduziu a felicidade, que no entanto durou pouco já que logo em seguida a tortura voltou, com as dobras do plástico da cadeira diante de mim a roçar constantemente nos meus joelhos, num desconforto contínuo que durou o resto de um dia de conversas poucas, já que o meu colega do lado confirmou que pouco mais do que romeno sabia falar, e que o resto dos meus companheiros de viagem pareciam preferir viajar em silêncio, ou entretidos a ver na TV videos de música repetidos ao infinito ou programas de comédia em Romeno dos quais pouco pude entender. Assim se passou o dia, intercalado por paragens salvadoras que me devolveram vida ao corpo e breves instantes de sono que me atordoaram o caminho e o fizeram passar mais rápido. Eram por volta das 8 da noite quando chegamos por fim a Ljubljana, uma surpresa agradável já que o fizemos um par de horas antes do previsto. A cidade recebeu-me coberta de neve, mas a felicidade de voltar ao mundo de fora fez-me esquecer o frio e devolveu-me um sorriso. Mochila às costas, pus-me a caminho, olhando para o Roménia Express com alívio mas sem deixar de pensar nas tantas pessoas ainda lá dentro, que começaram a viagem horas antes de mim e cujos caminhos iam, talvez, ainda e apenas a meio. É dura a vida de emigrante. O Roménia Express partiu de novo, passou por mim seguindo o seu caminho, e eu segui o meu pelas largas e geladas ruas desta cidade, envoltas numa luz alaranjada que me apresentou e guiou através daquela que será a minha casa nos dias que se seguem.

Ljubljana, Eslovénia, Janeiro de 2013