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Istambul

Istambul. A chegada de noite, a estação que não fala inglês, o transporte que leva a não sei onde e me deixa em lado nenhum, o alguém que aponta o caminho, o eléctrico que leva a bom porto, a chegada à nova casa, a saída à rua em seguida.

Istambul. A primeira visão de postal na noite iluminada de cores, o kebab naquele restaurante que só serve dois pratos, uma primeira Baklava com chá, um primeiro olhar sobre a Ásia adormecida antes do sono chegar.

Istambul. A manhã que desponta no Bósforo, a calçada que desço a correr, um primeiro café turco, a calçada que subo devagar, o encanto da Hagia Sophia, a mesquita azul que espreita em frente, a primeira incursão no bazar, a rua que desço até à água, a sandes de peixe fumegante, o tempo a passar sobre a ponte, o perder-me de novo na multidão.

Istambul. O bazar infinito onde entro de novo, as ruas cobertas do sol, a loja que vende tapetes, a que vende especiarias, as ruas cobertas de céu, a loja que vende malas, ‘a loja que vende AK47’s ao lado da que vende verduras?’, a imensa loja infinita que vende de tudo, dia e noite sem parar.

Istambul. O barco que ondula no Bósforo, a visão das suas margens, as pessoas a correr por elas, as pontes por cima de mim, as casas penduradas nos montes, o céu azul que nos cobre, o regresso ao cais de partida, o sol intenso que cai por entre as mesquitas, laranja, ao longe.

Istambul. O imã que chama por mim, os sapatos que tiro dos pés, a alcatifa suave do chão, as pessoas prostradas nela, o lugar onde me sento, o momento em que o tempo pára enquanto os outros rezam e eu me deixo existir ao seu lado, em silêncio.

Istambul. O regresso ao ocidente, a avenida que subo devagar, os muitos que sobem comigo indiferentes, a avenida que desço sem pressa, a torre que vejo ao longe, a cidade que vejo de cima dela, o ocidente entrelaçado no oriente, as ruas aonde volto para de novo me perder, o bazar iluminado onde entro uma última vez, a noite que passa em festa com músicas que desconheço, a semana que passou a correr, num instante, sem pensar.

Istambul. A calçada que desço de mochila, o ferry onde entro por fim, o pé que deixa a Europa, dez minutos sobre as águas, o pé que chega à Ásia, o olhar de despedida que lanço ao ocidente até ao dia de voltar a casa.

Istambul. O oriente por fim, o passeio frente ao mar, as pessoas a sorrir, os pescadores nas rochas, as crianças a correr, o momento em que me sento e contemplo o lado de lá como se daqui fizesse parte, o momento em que o banho turco me limpa e me faz sentir definitivamente parte daqui.

Istambul. A hora de partir que chega, um último café em corrida, um olhar de até já, a ida desta cidade na imensa saudade de voltar.

Istambul.


Istambul, Turquia, Fevereiro de 2013


















Um ano depois, ou, percorrendo a metáfora de uma revolução

Faz hoje um ano que parti. Saí de casa, pé ante pé, num vou ali já volto, num até já que durou até hoje, num até logo que não acabará enquanto não me cansar de sonhar com os pés no caminho, que durará até um dia voltar a casa pelo outro lado, sem pressas, se deuses e sorte quiserem.

Volveu um ano de viagem, que me trouxe desde Portugal por terra e mar, e hoje dou por mim aqui, na Tailândia, na sua capital Bangkok, cidade em constante alvoroço mas que hoje se revoluciona a sério, com ruas cheias de gente em protesto por um outro futuro, por algo melhor, talvez, por algo que não posso entender na totalidade mas que levou milhares à rua em protesto contra a corrupção do poder, em luta para recomeçar o seu país.

Saio à rua, a medo, um pé depois do outro, afinal talvez nem devesse estar aqui, mas fiquei, ‘quantas vezes terei o privilégio de testemunhar uma revolução ao vivo?’, pensei enquanto decidia não mudar de planos, ainda envolto na incerteza de se ficar não seria uma grande estupidez. Mas fiquei, e saí, um pé depois do outro, ainda a medo, percorrendo uma que sabia ser das principais artérias do protesto.

A tensão que pairava no ar sentia-se com os dedos, ou sentia-a eu com o coração em constante palpitação enquanto fazia caminho até ao café habitual dos últimos dias. No entanto a tensão foi-se esbatendo aos poucos, à medida que me passeava por esta revolução peculiar em que os revolucionários passavam por mim cobertos das cores do seu país, em pinturas e toda a espécie de bugigangas, alegres, quase alheios ao protesto, numa leveza que contrastava com tudo o que esperava, habituado que estou a ver imagens de revoluções em que caras encarniçadas e de veias pulsantes bradam o seu desagrado de forma violenta.

Aqui não, aqui a revolução parece ser diferente, quase uma festa, talvez por ser uma revolução não de militares ou políticos mas na sua larga maioria de pessoas normais que se cansaram de quem as desgoverna e querem apenas fazer-se ouvir. Tem algo de chique esta revolução, impressão a que não é alheio o facto do primeiro veículo que vi em protesto ter sido um descapotável de luxo, ou o facto de toda a gente parecer mais preocupada em tirar fotos uns dos outros e a si mesmos do que em gritar mais alto, e faz sentido que seja assim, afinal de contas não deixa de ser uma revolução em que são acima de tudo as classes mais altas quem se quer fazer ouvir nas ruas.

Pouco a pouco o medo venceu-se completamente, cansado de ver a rua pela janela do café saí pelas ruas de câmara em punho, usando-a para gravar para mim este dia, o dia em que pela primeira vez me vi no meio de um protesto e me fiz parte dele, ainda que passageiro, ainda que totalmente alheio aos seus propósitos. Caminhei, coleccionei sorrisos, ouvi música nos vários concertos improvisados, deixei-me encher desta energia e alegria. Também senti apertos, também ouvi gritos de revolta que não pude entender, também senti cansaço e quis voltar e sair daqui quando a novidade se gastou e já não fazia sentido estar aqui sem um propósito maior. Por fim fui embora, voltei a casa. Com o dia passado na rua a pesar-me nas pernas deitei-me, dormi num instante.

Assim passou o meu 365º dia em viagem. E, ainda que alheio ao protesto, foi numa cidade envolta neste espírito que acordei para o primeiro dia do novo ano que começou, um dia tranquilo em que acima de tudo senti saudades de casa, e em que deixei correr o tempo até à hora de celebrar entre amigos e sabores desconhecidos este marco da minha viagem, da minha vida, coisas inseparáveis que são. Ainda alheio à confusão voltei para casa, mas sempre com os protestos a espreitar-me ao longe, em cada esquina.

Metáfora real, a cidade parece querer dizer-me que não me acomode, que lute, que grite por mim numa revolução constante, não me deixando abater pelo peso dos dias que passaram, dos quilólmetros que percorri, acima de tudo dos que estão por passar e percorrer à minha frente, longos que são ainda até que um dia possa matar as saudades de casa. Afinal o cansaço já pesa, não há fronteiras, não sou de lado nenhum, sou hoje desta Bangkok em revolução, amanhã da estrada que me levará daqui para fora, de mais um país, de mais um destino, no fundo de destino nenhum, apenas do meu, apenas de mim.

Vivo no fundo um romance escrito com o meu próprio suor, com o pó que sacudo da mochila, com as lágrimas nos olhos que se enchem de saudade, com os sorrisos que vejo à minha volta e que me enchem a boca de certezas, com letras e palavras que não entendo, com linhas que se enchem de curvas enquanto escrevo o romance que sou. Nem sempre é fácil, vivo afinal num romance feito com as dúvidas que me invadem, com a incerteza que é ser quem sou, com o chão que se move a cada instante como num terramoto constante que tantas vezes me desnorteia e me questiona. Nem tudo é tão difícil, vivo afinal uma história de amor, por mim e pelo mundo, por cada pessoa que cruzo, por cada cultura que sorvo sofregamente, por cada quilómetro que percorro pela simples paixão de percorrer, há já um ano, uma vida toda.

São 12 os meses que passam hoje por mim, num instante que celebro como quem celebra um aniversário, o meu afinal, desse eu mais autêntico e real que em revolução vou construindo a cada dia, e que já amanhã atiro de novo à estrada, acto contínuo de mim, instinto de ser quem sou e que sigo com a naturalidade e certeza de quem respira mais um dia, enchendo de ar os pulmões da vida que faço mais viva, mais minha a cada dia.


Bangkok, Tailândia, 14 de Janeiro de 2014







Entretanto...

A viagem começou, arrancou, seguiu caminho. Eu fui com ela, de corpo e alma, mas as palavras ficaram, foram ficando por essa estrada, esquecidas, perdidas no tempo, num momento, num instante. Quando dei por mim já tinha tanta estrada debaixo dos pés e as palavras teimavam em ficar escondidas, dentro de mim, ou dispersas por tantos lugares, mas nunca onde pertenciam, aqui, nesta sua casa, a casa das palavras viajadas com que vou dando mais sentido ao meu caminho. Num entretanto que se fez eterno, a viagem seguiu enquanto as palavras ficaram paradas, e agora quando as recomeço, quando lhes dou vida, finalmente, a sua cronologia perde-se, faz-se diversa, inconstante, pouco importante, ou talvez mais ainda, ainda assim impossível de seguir. Seguirei a viagem, até que um dia a estrada me leve de volta a casa, seguirei a sua escrita, até que nada mais tenha p’ra dizer, mas daqui em diante as palavras de ontem ir-se-ão confundir com as de hoje, numa viagem em constante solavanco que entrelaçará o que trilho com os pés com as memórias do caminho que fiz para poder chegar aqui. Será um solavanco constante, como o meu, que seguirei na esperança de que, ainda que de maneira difusa e potencialmente confusa, possam comigo seguir nesta viagem.

Hanoi, Vietnam, Março de 2014

Duas semanas de estrada: breve crónica de uma fugaz travessia da Europa – Segunda parte

Balcãs afora

Comboio Zagreb-Belgrado
Viajo depressa, muito depressa, demasiado talvez, percorrendo num ápice a Europa, num sopro que me trouxe e me transporta em corrida pelos Balcãs, essa fronteira para mim até agora desconhecida e que vou aos poucos desvelando, ainda que de maneira fugaz, ainda que levado nessa leve brisa com que passo por aqui sem me demorar. Três dias depois de sair de casa já estava em Ljubljana, que vim encontrar gelada, escondida debaixo do grosso manto branco que enche de inverno esta cidade e a faz quase de conto de fadas, como um conto de Natal que percorro deixando leves pegadas na neve ao ritmo que subo e desço as suas ruas, atravesso o rio de um lado para o outro nas suas pontes, subo até ao seu castelo de onde avisto a imensidão de branco em que está transformado este país, voltando depois a baixar para me aquecer num goulash ou copo de vinho com que aconchego a noite. Mas mal cheguei e já parti, andando um pouco mais adiante até Novo Mesto, ainda na Eslovénia, cidade onde reencontro um velho amigo e me deixo envolver pela imensa hospitalidade da sua família. Ainda assim não me demoro, urge partir de novo, e é esse mesmo amigo que me leva até um novo país, a Croácia, até Zagreb, também abraçada pelo frio e cujas ruas percorro de forma igualmente fugaz, não sem antes reencontrar um outro velho amigo que de forma igualmente calorosa me faz rapidamente sentir em casa nesta terra desconhecida. É também em Zagreb que começo a fazer novos amigos entre os companheiros de viagem que cruzam o meu caminho. De entre as conversas que temos marca-me a história de um emigrante Sérvio, que tenta desesperadamente voltar para a Bélgica, onde trabalhava e de onde foi expulso, querendo voltar para poder reencontrar a sua família e continuar a ganhar a vida. Pede-me que o ajude, pergunta se tenho carro, se o posso levar até ao lado de lá da fronteira, ou perto o suficiente para passar a salto. Respondo com sincera tristeza que não tenho, apesar da vontade de o ajudar, olhando-o apenas, impotente, com a tristeza a multiplicar-se nos seus olhos num sofrimento que me traz de novo de encontro à dura realidade da vida por outras terras, realidade tão portuguesa, de outros tempos e de sempre, que me é tão familiar, sentida na própria pele e na de avós e outros familiares, mas nunca sentida desta maneira, na intensa dificuldade que a clandestinidade de querer trabalhar faz ao separar famílias em terras alheias. Apesar de tudo seguimos em direcções opostas, também não me demoro na Croácia e parto de novo para este, para a Sérvia, percorrendo de comboio a distância até Belgrado. No caminho, e sem querer, dou por mim a olhar pela janela em busca de sinais de destruição, marcas dessa guerra recente que povoou os noticiários da minha juventude e que massacrou milhares por aqui, ao longo desta linha de comboio talvez, certamente ao longo desta fronteira que cruzo. Já lá vão quase 20 anos desde que terminou, é certo, e as marcas visíveis são poucas, pelo menos por onde ando, mas ainda assim aparecem esporadicamente para me lembrar que o que faço hoje era impossível há tão pouco tempo. Contemplo os viajantes silenciosos em meu redor, cujas marcas são certamente mais duradouras e profundas, imagens silenciosas do dia em que viram a própria casa transformada em campo de batalha sanguinária. Apesar da curiosidade não quebro o silêncio, menos ainda para lhes falar desse tema, deixando-me antes embalar pelo suave ressalto das linhas por onde ando e pelo amarelo-torrado da tarde que cai já em terras Sérvias. Apesar das memórias tristes encontro este país bonito, alegre, em especial a sua capital Belgrado, cidade vibrante, apaixonante, misteriosa, intensa, de sabores novos, de ritmos enérgicos. A cidade clama para que fique mais tempo, mas a viagem urge, sigo a contragosto na promessa interior de voltar quando possível, avançando contínuo para este, depressa, demasiado depressa... Assim chego à Bulgária numa fria manhã de Sófia, onde me sinto recuar até aos tempos do velho comunismo na estação de comboios que me recebe, em que nada entendo, e de onde com dificuldade arranjo maneira de seguir até ao centro, cravejado de mais velhas relíquias do bloco de leste que demoram em se deixar apagar pelas mudanças evidentes que o tempo foi trazendo desde a democracia. É aqui que sou obrigado a parar pela primeira vez nesta viagem, abatido pelo cansaço, segui demasiado depressa, já não sei viajar assim, por isso tiro dias de descanso, curtos, aqui e mais adiante em Plovdiv, velha relíquia romana onde encontro também os sabores da melhor cozinha daqui. Mas assim que posso sigo, sigo, infinito, mais além, mais para este, viajando muito depressa, demasiado talvez, mais do que queria certamente, mas empurrado pela urgência da chegada à Índia ter uma data marcada que não me deixa aproveitar como queria estas terras desconhecidas. Silenciosamente, a Europa foi-se despedindo de mim, aos poucos, primeiro no idioma que deixei de entender, depois na escrita que se fez imperceptível, nas igrejas que se fizeram ortodoxas, no café que se fez turco, tudo num crescendo de pequenas mudanças que acompanharam a velocidade a que me afastei de casa e me fui embrenhando pelo este do meu mundo. Antecâmara do que está por vir, o leste da Europa foi-me desvendando aos poucos os segredos do oriente, num muito lento tirar de véus que me aguça a curiosidade e faz aumentar a excitação na ânsia dos dias que estão por vir, já ali mais adiante, em Istambul, último porto da velha Europa e porta de embarque para a Ásia que me espera. Viajei depressa, demasiado depressa, por isso é com alegria que chego à Turquia para pela primeira vez nesta viagem me poder demorar, como gosto, sem pressa de partir, apenas envolto na preguiça de aos poucos me ir sentindo parte de cada lugar.

Pelos Balcãs, Janeiro de 2013

Ljubljana, Eslovénia

Ljubljana, Eslovénia

Ljubljana, Eslovénia

Novo Mesto, Eslovénia

Novo Mesto, Eslovénia

Zagreb, Croácia

Zagreb, Croácia

Zagreb, Croácia

Zagreb, Croácia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Belgrado, Sérvia

Sófia, Bulgária

Sófia, Bulgária

Sófia, Bulgária

Plovdiv, Bulgária

Plovdiv, Bulgária

Plovdiv, Bulgária