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Um ano depois, ou, percorrendo a metáfora de uma revolução

Faz hoje um ano que parti. Saí de casa, pé ante pé, num vou ali já volto, num até já que durou até hoje, num até logo que não acabará enquanto não me cansar de sonhar com os pés no caminho, que durará até um dia voltar a casa pelo outro lado, sem pressas, se deuses e sorte quiserem.

Volveu um ano de viagem, que me trouxe desde Portugal por terra e mar, e hoje dou por mim aqui, na Tailândia, na sua capital Bangkok, cidade em constante alvoroço mas que hoje se revoluciona a sério, com ruas cheias de gente em protesto por um outro futuro, por algo melhor, talvez, por algo que não posso entender na totalidade mas que levou milhares à rua em protesto contra a corrupção do poder, em luta para recomeçar o seu país.

Saio à rua, a medo, um pé depois do outro, afinal talvez nem devesse estar aqui, mas fiquei, ‘quantas vezes terei o privilégio de testemunhar uma revolução ao vivo?’, pensei enquanto decidia não mudar de planos, ainda envolto na incerteza de se ficar não seria uma grande estupidez. Mas fiquei, e saí, um pé depois do outro, ainda a medo, percorrendo uma que sabia ser das principais artérias do protesto.

A tensão que pairava no ar sentia-se com os dedos, ou sentia-a eu com o coração em constante palpitação enquanto fazia caminho até ao café habitual dos últimos dias. No entanto a tensão foi-se esbatendo aos poucos, à medida que me passeava por esta revolução peculiar em que os revolucionários passavam por mim cobertos das cores do seu país, em pinturas e toda a espécie de bugigangas, alegres, quase alheios ao protesto, numa leveza que contrastava com tudo o que esperava, habituado que estou a ver imagens de revoluções em que caras encarniçadas e de veias pulsantes bradam o seu desagrado de forma violenta.

Aqui não, aqui a revolução parece ser diferente, quase uma festa, talvez por ser uma revolução não de militares ou políticos mas na sua larga maioria de pessoas normais que se cansaram de quem as desgoverna e querem apenas fazer-se ouvir. Tem algo de chique esta revolução, impressão a que não é alheio o facto do primeiro veículo que vi em protesto ter sido um descapotável de luxo, ou o facto de toda a gente parecer mais preocupada em tirar fotos uns dos outros e a si mesmos do que em gritar mais alto, e faz sentido que seja assim, afinal de contas não deixa de ser uma revolução em que são acima de tudo as classes mais altas quem se quer fazer ouvir nas ruas.

Pouco a pouco o medo venceu-se completamente, cansado de ver a rua pela janela do café saí pelas ruas de câmara em punho, usando-a para gravar para mim este dia, o dia em que pela primeira vez me vi no meio de um protesto e me fiz parte dele, ainda que passageiro, ainda que totalmente alheio aos seus propósitos. Caminhei, coleccionei sorrisos, ouvi música nos vários concertos improvisados, deixei-me encher desta energia e alegria. Também senti apertos, também ouvi gritos de revolta que não pude entender, também senti cansaço e quis voltar e sair daqui quando a novidade se gastou e já não fazia sentido estar aqui sem um propósito maior. Por fim fui embora, voltei a casa. Com o dia passado na rua a pesar-me nas pernas deitei-me, dormi num instante.

Assim passou o meu 365º dia em viagem. E, ainda que alheio ao protesto, foi numa cidade envolta neste espírito que acordei para o primeiro dia do novo ano que começou, um dia tranquilo em que acima de tudo senti saudades de casa, e em que deixei correr o tempo até à hora de celebrar entre amigos e sabores desconhecidos este marco da minha viagem, da minha vida, coisas inseparáveis que são. Ainda alheio à confusão voltei para casa, mas sempre com os protestos a espreitar-me ao longe, em cada esquina.

Metáfora real, a cidade parece querer dizer-me que não me acomode, que lute, que grite por mim numa revolução constante, não me deixando abater pelo peso dos dias que passaram, dos quilólmetros que percorri, acima de tudo dos que estão por passar e percorrer à minha frente, longos que são ainda até que um dia possa matar as saudades de casa. Afinal o cansaço já pesa, não há fronteiras, não sou de lado nenhum, sou hoje desta Bangkok em revolução, amanhã da estrada que me levará daqui para fora, de mais um país, de mais um destino, no fundo de destino nenhum, apenas do meu, apenas de mim.

Vivo no fundo um romance escrito com o meu próprio suor, com o pó que sacudo da mochila, com as lágrimas nos olhos que se enchem de saudade, com os sorrisos que vejo à minha volta e que me enchem a boca de certezas, com letras e palavras que não entendo, com linhas que se enchem de curvas enquanto escrevo o romance que sou. Nem sempre é fácil, vivo afinal num romance feito com as dúvidas que me invadem, com a incerteza que é ser quem sou, com o chão que se move a cada instante como num terramoto constante que tantas vezes me desnorteia e me questiona. Nem tudo é tão difícil, vivo afinal uma história de amor, por mim e pelo mundo, por cada pessoa que cruzo, por cada cultura que sorvo sofregamente, por cada quilómetro que percorro pela simples paixão de percorrer, há já um ano, uma vida toda.

São 12 os meses que passam hoje por mim, num instante que celebro como quem celebra um aniversário, o meu afinal, desse eu mais autêntico e real que em revolução vou construindo a cada dia, e que já amanhã atiro de novo à estrada, acto contínuo de mim, instinto de ser quem sou e que sigo com a naturalidade e certeza de quem respira mais um dia, enchendo de ar os pulmões da vida que faço mais viva, mais minha a cada dia.


Bangkok, Tailândia, 14 de Janeiro de 2014







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