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Para lá daquela linha – um primeiro passo no Pacífico

Foi na companhia de amigos que até ela cheguei. A linha, indiferente, esperava por mim com a mesma desfaçatez com que espera qualquer um, habituada, ignorando ou nem querendo saber quanto para mim significava cruzá-la, vencê-la, passar para o seu outro lado, o de lá, o desse novo país que dá início a uma nova etapa na minha viagem, na minha vida, no meu mundo. Sem saber a linha separava-me mais que da Papua Nova Guiné, separando-me também, ainda que simbolicamente, do começo da travessia do oceano Pacífico, o novo e grande desafio da minha viagem.

Até me aproximar da linha, no entanto, dois anos passaram, os que me trouxeram por terra e mar desde o sul de Portugal, desde a minha Loulé natal até esta fronteira. No longo caminho atravessei fugazmente a Europa, abracei a chegada ao oriente na Turquia, venci as fronteiras da desconfiança no Irão, arrisquei a travessia da intensa e acolhedora surpresa que é o incompreendido Paquistão, redescobri o caminho para a Índia, terra de uma antiga paixão que cresceu mais um pouco, encontrando mais adiante no Nepal a minha casa nas montanhas, por onde andei perdido ao longo de cinco meses com olhos e pés assentes no topo do mundo.

Assim passou o primeiro ano na estrada, que terminou de forma épica com um breve regresso à Índia em caminho à primeira travessia marítima desta viagem, feita em ferry entre Calcutá e as ilhas Andaman, e depois entre estas e a Tailândia ao sabor das ondas e do vento na boleia de um pequeno catamarã.

Foi numa Tailândia em alvoroço político que começou o meu segundo ano de viagem, começando também por este país uma breve volta ao carrossel do sudoeste asiático, continuada pelo Camboja, perdido entre a imensa beleza cultural e o horror extremo da recordação do regime de Pol Pot, pelo exótico e deslumbrante Vietname, que me deixou com uma imensa vontade de voltar, e pelo preguiçoso Laos, onde perdi a noção do tempo durante semanas, completando o carrossel no regresso à Tailândia, desta vez cheia de sorrisos e água pelos ares na comemoração do seu novo ano, o Songkran.

Finda a volta segui para sul, atravessando brevemente Malásia e Singapura numa espécie de regresso ao ocidente feito de olhos em bico. Por semanas deixei-me envolver na sua mistura intensa de modernidade, culturas ancestrais e sabores extremos, à qual não é estranho Portugal, presente em especial nesse antigo pólo central do nosso império oriental de 1500 que foi Malaca, onde ainda hoje língua e cultura se mantêm vivas no orgulho luso dos descendentes de marinheiros Portugueses de outros tempos.

De Singapura atravessei de novo o mar, levando o resto do ano de ilha em ilha enquanto percorri a Indonésia de um extremo ao outro, indo ainda pelo meio de encontro a esse povo corajoso e lutador, o povo irmão da antiga colónia de Timor Leste, que hoje se faz nação nova. Por lá pude matar as saudades de casa no bacalhau, no pastel de nata, na minha língua, e também ganhar nova coragem ao viver na pele a força incrível deste povo sofrido, cuja luta pela independência acompanhei na minha adolescência e juventude, e cujo testemunho vivo me lembrou que resistir é mesmo vencer. Mas se em Timor Leste reencontrei de certa forma a minha casa, na Indonésia encontrei uma casa nova, demorando-me no total seis meses entre antes e depois de Timor Leste, dedicados a conhecer a sua imensa diversidade natural e cultural.

Já nos últimos dias do segundo ano de viagem cheguei a um novo continente, a Oceânia, que toquei pela primeira vez na metade oeste da ilha da Papua, região incorporada na Indonésia nos anos 60 e onde hoje muitos ainda lutam e sonham com a promessa de independência, adiada pela invasão indonésia que perpetua até hoje o período colonial nesta metade da ilha. Incapaz, cansado, nostálgico de casa, alheei-me de tudo isto, imergi-me durante o Natal na magia do fundo do mar das ilhas de Raja Ampat, entrando depois nos primeiros dias do novo ano nas águas do Pacífico, que naveguei ao longo da costa norte da ilha de Papua e a caminho da fronteira da Papua Nova Guiné.

Foi na companhia de amigos que até ela cheguei. A linha, indiferente, deixou-me passar, enquanto atirei um último adeus ao segundo ano de viagem, personificado em Jose, Queensa e demais família, amigos do oeste da Papua conhecidos exactamente enquanto navegava à entrada do Pacífico, e que fizeram questão de me trazer até ela, à linha, local de despedida, início de nova etapa na minha viagem.

Vencida a linha olhei em frente, fiz-me ao caminho, mergulhando pouco a pouco na Papua Nova Guiné, no seu verde escuro, vivo, intenso, nas suas pequenas aldeias, no suave ondular das curvas da estrada, no contorno da sua costa quase virgem, na sua calma intocada que contrasta vivamente com o super-populado e híper-construido lado Indonésio da ilha. Gostei imediatamente daqui, sem saber bem porquê, talvez apenas por me sentir entrar num novo mundo, em tudo tão diferente do meu.

Cerca de uma hora depois da fronteira cheguei à primeira cidade, Vanimo, capital da região de Sandaun, ainda assim não mais que uma espécie de vila dispersa entre duas praias e em redor de um aeródromo, populada por pequenas casas de madeira e zinco dispersas entre o inevitável verde deste país tropical. Cheguei com intenção de passar um par de dias, mas não me demorei mais que um par de horas, as suficientes para num acaso encontrar transporte para este, e de caminho saborear a minha primeira refeição no país, um tradicional ‘aguir’, prato simples de frango, banana, inhame e verduras cozinhado ao vapor em folhas de bananeira.

Foi assim que acabado de chegar ao país dei por mim no meio do mar, navegando ao longo da costa entre ondas desordenadas e a bordo de um pequeno barco de pesca dos seus 4 metros, espécie de montanha russa aquatica que o experiente capitão fazia agilmente fugir por entre enormes vagas que nos faziam minúsculos.

Confesso que senti medo, afinal nunca tinha estado no meio de um mar tão grande em barco tão pequeno, arriscando nas mãos de quem desconhecia as próximas horas, navegando a minha vida ao longo da ténue linha que separa o mar das suas ondas.

Confesso que me senti corajoso, sentindo-me estranhamente à vontade neste mar, em casa, feliz, rodeado de gente que dia após dia se faz muito mais corajosa que eu, que me acolheu como família, primeiro num sorriso de quem via o medo nos meus olhos, depois numa conversa alucinante sobre o país, a sua vida, a minha, partilhando horas de desassossego que na companhia das suas palavras se fizeram breves.

Confesso que me senti feliz, quando após quatro horas finalmente chegamos, quando as ondas se fizeram mar calmo, quando o mar se fez chão firme na cidade de Aitape, quando o incerto se fez casa, quando o dia intenso de viagem se fez cama e a emoção se fez sono num merecido descanso de viajante exausto.

Foi na companhia de amigos que até ela cheguei, e uma vez vencida a fronteira foi assim vivi o meu primeiro dia na Papua Nova Guiné, intenso, emocionante, assustador, alucinante, perigoso, agradavelmente desconfortável, rodeado de imensa beleza, acima de tudo passado na companhia de encantadores estranhos que se fizeram amigos, ainda que apenas por breves instantes, dando as boas vindas ao meu primeiro dia no Pacífico, excitante prelúdio dos muitos que espero viver enquanto atravessar esse mar imenso, por rota e destinos incertos, ao sabor do acaso mas também da imensa vontade de seguir viagem, por terra e mar, sempre sem pressa de chegar.

Aitape, Papua Nova Guiné, Janeiro de 2015






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